Durante dez anos fui para o trabalho de bicicleta – tal como milhares de outros parisienses. No Verão como no Inverno: a felicidade do corpo em movimento, da presença directa no mundo, da mudança de perspectiva... Recordemos Alexandre O’Neill:
Redescubro, contigo, o pedalar eufórico
pelo caminho que a seu tempo se desdobra
reolhando os beirais – eu que era teórico
do ar livre – e revendo o passarame à obra.
(Elogio barroco da bicicleta)
Quando acaso em Lisboa falo disto, alguns não acreditam e os outros contestam:
- Com tanto frio e chuva?!
Ora bem... O frio e a chuva não incomodam mais os ciclistas do que os peões e, que eu saiba, pouca gente se confina em casa por chover ou fazer frio. Acima dos zero graus, logo que pedalamos, entra em funcionamento o nosso sistema pessoal de aquecimento. É verdade que, abaixo dos zero graus, sentimos frio na cara; no passado mês de Dezembro, em Paris, após uma hora de pedalagem, eu tinha a cara entorpecida. No entanto, sobretudo em Lisboa, estas temperaturas são raras. E a chuva, ao contrário do que se pensa, também não representa inconveniente terrível, embora exija prudência, por diminuir a visibilidade e tornar o piso escorregadio. Mas é um perigo raro. Durante vários anos, registei as molhas apanhadas na ida, entre a casa e o liceu, do dia 1 de Setembro, quando começavam as aulas, ao dia 5 de Julho, quando começavam as férias: o máximo foram dez. Claro que, cada ano, chovia mais – porém não exactamente no momento em que eu pedalava. Nas raras vezes em que chegava ao liceu molhada: sacudia o blusão, mudava de calças (tinha sempre outras no cacifo) e, ao fim de cinco minutos, encontrava-me tão operacional como qualquer colega que fosse de carro. No fim de contas, como Alexandre O’Neill, com ou sem chuva: prefiro a prática à teoria do ar livre.
Em Portugal é o excesso de calor que, algumas vezes, me impede de circular de bicicleta; contudo, de manhã cedo ou ao fim da tarde, mesmo no Verão, é sempre possível pedalar. O meu problema em Lisboa é que não me sinto segura quando desço (ou subo) a Almirante Reis... Parece-me perigoso. Vejo os automóveis a passarem por mim: demasiado perto e demasiado depressa. Não são raros os que, por excesso de drogas ou velocidade, se lançam para cima de uma árvore ou de um painel publicitário. E um até pela estação do metro abaixo... Isto mais a linha do eléctrico, os buracos no alcatrão, as tampas disto ou daquilo desniveladas... Qual a esperança de vida de um ciclista nesta avenida? Vejo contudo, com admiração, bastantes que a sobem e descem...
Muita gente argumenta que Lisboa, com as encostas e escadinhas, não é uma cidade para a bicicleta. Concordo que não é fácil subir a rua de Angola; embora veja um ou outro ciclista fazê-lo. (Eu, nos metros que me parecem mais inclinados: caminho.) No entanto a maioria dos percursos lisboetas é fácil e pode ser quotidiana ou ocasionalmente percorrida de bicicleta – com resultados positivos não só na saúde dos ciclistas mas até dos restantes lisboetas: a bicicleta não polui.
A bicicleta torna-nos mais belos, mais fortes e, por conseguinte, mais bem dispostos. Representa uma terapia contra a obesidade, a diabetes, todos os males decorrentes dos nossos excessos alimentares – e não custa nada à segurança social. Devia ser recomendada pelo médico de família... E, ao contrário do automóvel, não nos separa dos outros; a solidão não é outra calamidade nas cidades?
A bicicleta é o meio de transporte de amanhã. No entanto hoje, sobretudo em Lisboa, continua um tempo de automóveis. Que invadem os passeios, envenenam os ares, atropelam os peões e custam muito caro na manutenção de ruas e construção de infra-estruturas. Recordemos o túnel do Marquês de Pombal. Por exemplo. (Claro que o automóvel é necessário; absurda é a sua utilização, quando não indispensável.) A câmara de Lisboa tem por isso feito o esforço muito apreciável de criar ciclovias. Existe uma do Cais do Sodré à Torre de Belém que facilita – e aumenta – a frequentação, não apenas da beira-Tejo, mas daquela parte da cidade. Eu ao CCB, ao Museu do Oriente, ao Museu da Arte Antiga, aos pastéis de Belém, vou de bicicleta; e, mesmo quando saio sem projectos, por haver a ciclovia, descaio para aquele lado da cidade. Temos outra ciclovia de Entrecampos ao Campo Grande. E um eixo Monsanto/Expo.
A distribuição das ciclovias mostra uma certa imagem da bicicleta: o lazer. É preciso começar por aqui. Todas as cidades europeias começaram pela bicicleta do domingo antes de passarem à bicicleta da vida quotidiana; mas não ponhamos de lado outra função da bicicleta: a de meio de transporte quotidiano. O preço da gasolina sobe? Experimentem fazer a totalidade ou parte dos trajectos de bicicleta. Em Paris, em Berlim, não faltam homens a pedalar com fato, gravata e pasta; e não deixam por isso se apresentar tão impecáveis como os outros. Claro que, se há encostas no trajecto, mais vale tomarem um duche... As melhores empresas põem à disposição dos empregados algumas cabines: custam-lhes mais barato do que os lugares de estacionamento e, ao mesmo tempo, estas empresas beneficiam da energia e boa disposição dos trabalhadores.
Não são poucos os ciclistas que vejo nas ruas de Lisboa; e mais seriam eles, se houvesse segurança. Por isso devem ser criados percursos que atravessem a cidade: por exemplo, um eixo Norte-Sul que ligue a ciclovia da beira-Tejo com a de Entrecampos.
Em Paris a tendência é, até agora, com frequência, a criação de falsas ciclovias: desenham no alcatrão uma bicicleta que não serve para nada. Em Lisboa há poucas ciclovias – mas são magníficas. Se há ciclovia, há segurança: tanto as crianças como os ciclistas pouco experientes podem pedalar à vontade.
Para além de contribuir para a nossa qualidade de vida, a bicicleta é igualmente um objecto estético e poético. Vinícius de Moraes chama centauresas às ciclistas. (Balada das meninas de bicicleta). A bicicleta transforma-nos não só em centauros mas igualmente em pégasos: dá-nos asas. Seja qual for a nossa idade, podemos seguir a injunção do poeta: Bicicletai, meninada.
Bicicletemos, então...
tags: ciclovias, manuela degerine
MM
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