Se o uso de capacete gera debate acalorado no meio ciclístico, imagine para quem é de fora do meio.
Para quem nunca usou bicicleta como meio de transporte parece absurda a ideia de não pôr o casco na cabeça.
Aliás, recentemente, tive a reacção chocada de duas colegas de trabalho, em dias distintos, ao me verem sem capacete, só com um chapelão que protege do sol.
Uma delas não se conteve: “como assim, você sem capacete?”
Cabe o esclarecimento que, antes, sempre usava capacete.
Há algum tempo, optei por não usar, mais por uma questão simbólica/ideológica de passar a imagem da bicicleta como algo trivial, que dispensa o uso de acessórios.
O uso da bicicleta como meio de transporte vem crescendo, mas ainda se tem uma visão muito associada a desporto.
Aliás, mesmo sem capacete e com roupa normal de trabalho, ainda ouço conhecidos me saudarem como atleta.
Meus filhos têm menos de 10 anos e sempre usam capacete, por recomendação minha e por costume. Minha esposa gosta de usar, mas não o coloca sempre. Eu tenho o meu e, quando percorro distâncias mais longas e com mais conflitos no percurso, opto por usar o capacete.
À noite, ele ajuda na visibilidade: colei reflectivo na superfície externa.
Pela experiência que tive de pedalar em cidades europeias, da Holanda, Dinamarca, Alemanha e França (referências em mobilidade), e considerando a experiência em Brasília (o contraponto à ideia de cidade humanizada), me convenci de que a segurança do ciclista – das pessoas em geral, incluindo pedestres e motoristas – é garantida com um ambiente humanizado. Não são os acessórios que garantem segurança.
A multidão que pedala e forma congestionamentos nas cidades da Holanda e da Dinamarca não usa capacete (o uso é esporádico, mais comum entre crianças). Seriam eles europeus loucos e radicais, sem cuidado com a própria segurança?
Ciclistas em Amsterdã
Considerando nosso contexto urbano, bastante voltado ao rei automóvel, em que se destacam o alto limite de velocidade e as grandes obras de ampliação viária, com construção de túneis e viadutos na busca insana por fluidez motorizada, a busca de segurança por meio de acessórios apenas retira o foco das reais causas de insegurança.
Os próprios órgãos de trânsito disseminam a imagem da bicicleta como algo inseguro (com ciclistas na cidade equipados com luvas, joelheiras, cotoveleiras e capacete), em vez de ressaltar os inúmeros benefícios da bicicleta e de garantir um ambiente humanizado e atrativo para mais pessoas de bicicleta (ou a pé, de patins ou patinete).
Ilustração no material Paz e Cidadania no Trânsito, do Governo do Distrito Federal
Devemos lutar pela humanização das cidades, por um ambiente urbano que seja favorável às pessoas. Em vez de vias largas e de alta velocidade, vias com limite reduzido de velocidade e com justa distribuição do espaço: faixas com prioridade ao transporte coletivo; calçadas; ciclovia, ciclo faixa ou compartilhamento seguro, com sinalização.
Num país em que o aspirante a motorista faz um teste simples para dirigir (ou seria para pilotar?) e se transforma num autêntico pateta, mirando pedestres e ciclistas, não há capacete que proteja, por melhor e mais caro que seja. Numa colisão envolvendo pedestre ou ciclista e um motorista a 80 km/h, não sobra nada.
Há que se considerar que estamos num dos países com maior desigualdade social. Muitos usam a bicicleta não por opção, mas por obrigação, para poupar a passagem de ônibus e sobrar um trocado a mais no fim do mês. Muitas vezes, o principal acessório de proteção/conforto é um par de chinelos. Como exigir que esses trabalhadores passem a usar capacete?
Trabalhadores usuários de bicicleta
Mesmo se a obrigatoriedade do capacete fosse algo louvável, uma tendência mundial com evidências claras de promoção da segurança, ficaria a dúvida quanto à efetividade da lei. Temos as famosas leis que não pegam. Haveria campanhas educativas voltadas ao uso do capacete? Haveria fiscalização para garantir o cumprimento? Haveria programas para distribuir gratuitamente os cascos aos ciclistas de baixa renda?
Levando-se em conta a escassez de recursos, a grave crise económica e orçamentaria, há que se priorizar os investimentos.
Qual seria a melhor opção: investir na obrigatoriedade e na compra de capacetes, em educação e fiscalização do uso de capacete; ou investir em infraestrutura (ciclovias, ciclo faixas e bicicletários) e em programas de humanização, que incluam redução da velocidade e melhor formação dos motoristas, por exemplo?
As consequências jurídicas da obrigatoriedade do capacete devem ser ressaltadas.
Se já há certa angústia em relação à impunidade e às penas brandas nos crimes de trânsito, imagine se os motoristas envolvidos em atropelamento puderem se defender com base no fato de a vítima estar sem o capacete como item obrigatório de segurança.
Lembremos que a indústria automotiva tem forte peso, a ponto de influenciar as leis e as ações governamentais (ex.: isenção de IPI ao sector automotivo; obras rodoviárias) e de inundar as ruas e os jornais com anúncios diariamente.
A bandeira da obrigatoriedade do capacete ajusta-se bem aos interesses do setor automotivo, de pôr uma armadura nos demais usuários da via a fim de minimizar impactos contra as máquinas possantes com alta tecnologia a bordo.
MM
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