Das memórias de infância aos usos no presente.
“Tudo lugares onde o campo está perto, onde era possível estar só, passear por sítios aprazíveis, apanhar amoras e, na beira dos caminhos, cortar canas para fazer brinquedos.” Orlando Ribeiro, sobre a sua infância em Memórias de Um Geógrafo, Edições João Sá da Costa, 2003.
“Brinquedos não os havia” ou “eram poucos”…. – recordam os mais velhos – e os que havia eram inventados pela criança, construídos no momento, ao sabor da vontade. Ou então feitos pelos pais e avós. Utilizavam-se os materiais existentes no meio natural (madeira, cortiça, cana, lã, barba de milho, bugalhos, bolotas, palha) ou doméstico (trapos, botões, arames, latas, caixas de madeira). Estavam, por isso, profundamente ligados às matérias disponíveis, aproveitadas em contextos de pobreza e escassez de bens – “a necessidade faz o engenho” –, e transformadas com recurso a técnicas essencialmente manuais.
A cana[1], abundante junto aos cursos de água e fácil de trabalhar, tem ainda, no Algarve, inúmeros usos ligados às atividades rurais. É utilizada no varejo e na apanha de frutos secos e da azeitona, nas hortas para sustentar o crescimento de tomates e leguminosas, e é com as suas ripas que os cesteiros fazem canastras e cestos para diversos fins, como o transporte e armazenamento de frutos secos. Antigamente, no período das ceifas, eram de cana as dedeiras (ou canudos) utilizadas pelas ceifeiras para proteger os dedos de algum desvio da foice. Na área da construção tradicional, são conhecidos os telhados de caniço na cobertura interior da habitação.
Tendemos, no entanto, por vezes a esquecer que a cana era também matéria de eleição para a construção de muitos dos brinquedos infantis: pífaros, apitos, reco-recos, curre-curres, espingardas, gaiolas de grilo e até a estrutura dos papagaios de papel. Deambulando pelos campos para apanhar grilos, para ir aos pássaros, ou para mergulhos na ribeira próxima, transportando sempre a navalhinha no bolso, se passava junto de um canavial, das mãos da criançada podia sair o brinquedo que a necessidade ou o desejo ditasse no momento.
Estes brinquedos em cana integram o vasto universo dos brinquedos populares, muitos deles representados em contextos arqueológicos antigos e na iconografia, desde o período medieval. Em Portugal, foram pela primeira vez descritos nos textos etnográficos de Adolfo Coelho, Teófilo Braga, Leite Vasconcelos (os primeiros a reconhecerem-lhes valor pedagógico e representativo da “alma do povo”), Eduardo Sequeira (autor de um interessantíssimo estudo onde regista a construção de brinquedos a partir de matérias vegetais), Augusto César Pires de Lima e Fernando Castro Pires de Lima[2], todos eles fontes imprescindíveis para o estudo da infância e do brincar entre os finais do séc. XIX e 1ª metade do séc. XX. Atualmente, são incontornáveis, pelo seu fôlego e sistematização, os estudos de João Amado[3] que voltou a chamar a atenção para o valor deste frágil património, bem como trabalhos recentes que aliam a constituição de coleções, no contexto de projetos educativos, à recolha de depoimentos orais e memórias sobre a infância e o brincar.[4]
Brinquedos musicais
Os sons do campo – o chilrear dos pássaros, o canto das cigarras e dos grilos ou o coaxar das rãs – são o referente para alguns dos primeiros instrumentos sonoros e musicais (de sopro e de percussão) construídos a partir da cana: flautas, pífaros, apitos, matracas ou reco-recos. Quase todos emitem sons parecidos com o seu referente não lúdico.
Dentro do universo dos instrumentos de sopro, o pífaro faz-se a partir de um fragmento de cana, com um dos lados aberto e outro cortado em bisel. À frente e por cima deste corte abre-se uma fenda retangular, onde se insere uma “língua” em pau de oliveira, figueira, oliveira ou cortiça. Ao longo da cana abrem-se alguns furos. Também a flauta se constrói com um troço de cana, fazendo-se uma pequena abertura redonda junto ao entre-nó tapado e várias aberturas mais pequenas ao longo da cana. O tocador com os lábios sobre a primeira abertura e com os dedos das mãos regula a saída do ar pelas restantes obtendo as melodias desejadas. Remetem ambos os instrumentos para momentos festivos ou dias especiais no calendário, como a quinta-feira da Ascensão, em que as crianças com os seus pífaros e assobios de cana, acompanhavam a tradicional procissão de bênção dos campos “como se fossem passarinhos a cantar”.[5] Ambos, flauta e pífaro, lembram também as muitas habilidades do pastor, que no seu isolamento, enquanto o gado pastava, ocupava o tempo a cortar, esculpir, gravar a madeira ou a cana, de que tiraria sonoridades que resultavam de um apurado sentido de observação e interação com o meio.
Ainda nos instrumentos sonoros, a gaita de capador, de amolador ou flauta de pã, conhecida desde a antiguidade e nas mais diversas partes do mundo, faz-se pela junção (colagem ou amarrando com um fio) de um conjunto de pequenos fragmentos de cana de diferente comprimento e grossura. Para além de objeto lúdico, era também utilizada pelos amola-tesouras e capadores que percorriam as aldeias oferecendo os seus serviços.
Também a partir da cana se pode fazer o núnú, cortando junto ao nó de um fragmento verde, naturalmente tapado, uma pequena lasca da parte superior lenhosa da cana até alcançar a fina película interna que se devia manter intacta. Soprando saíam sons que se assemelhavam a nu..nu…nu…
Os apitos de cana são diversos na forma e sonoridades, desde os mais simples aos mais complexos que, com água no seu interior, imitam o chilrear dos pássaros.
Já na área da percussão, é sobejamente conhecida a cana rachada, cujo som característico se consegue batendo no sítio onde a cana está rachada. Para fazer um treco-lareco, também conhecido por grilo ou estaladinhas, abre-se a meio um fragmento de cana, nos rebordos do sulco cavam-se entalhes paralelos por onde se fazem passar algumas voltas de linha bem apertadas. Entre elas colocam-se pequenas palhetas de cana. Pressionando e soltando as palhetas estas batem no fundo do sulco provocando um estalo. O reco-reco, reque-reque ou rela (assim chamado por evocar o som das relas) é construído com o fragmento de uma cana grossa com um nó numa das extremidades, junto ao qual se abrem dois orifícios e se recorta uma palheta. Encaixa-se depois um rodízio que gira sobre um eixo enfiado nos dois orifícios. O ressalto da palheta provoca o som característico da matraca.
Transportes
Com um apelo constante ao movimento, as crianças conduzem o seu impulso e aprendem a dominar o mundo que as rodeia, com os inúmeros brinquedos que reproduzem transportes reais ou simbólicos. Uma roda ou duas pequenas rodas (de madeira, cortiça,…) atravessadas por um eixo, que encaixa numa cana ligeiramente aberta numa das extremidades. A outra assenta sobre o ombro da criança que agarrada à cana se desloca movimentando o brinquedo – a carreta ou o curre-curre – que nas suas variantes (forma e matéria-prima) remete para uma universalidade sem fronteiras. Inventávamos um carrinho para a gente brincar… Era uma cana aí com 1,5 m e nós arranjávamos um bocado de cortiça, fazíamos uma roda com um buraquinho no meio e depois púnhamos um pauzinho assim atravessado. Aqui era o guiador, púnhamos ao ombro e lá íamos com aquilo.” (Edolino Gonçalves, n. 1934, Santa Rita, Vila Real de Santo António)
Com a cana havia também quem construísse carros, camiões e bicicletas…
Também conhecidos por estrelas, os papagaios de papel, que integramos nos transportes simbólicos, divergem consoante a zona em que são feitos, no formato, no material utilizado (papel de seda, mata borrão, jornal,…), no tipo de cola (resina de cerejeira ou ameixoeira, farinha com água, cola de sapateiro). A sua construção iniciava-se pela armação de cana (depois de rachada ao meio), dando-se-lhe logo a forma que a tradição local impunha (estrela, bacalhau,…), sendo depois colado o papel.
“Os papagaios eram com umas caninhas cruzadas,depois forrávamos aquilo com um pouco de papel, papel mata-borrão que havia nas mercearias, aquele papel grosso em que às vezes embrulhavam a banha. (…) Cola, qual cola? Havia lá dinheiro para comprar cola! Era com os bicos destas pitas que havia. A gente apanhava esses bicos e prendíamos o papel, fazia vez de agulha, está a perceber? Quando havia vento, um fio comprido, uma linha de meia que naquele tempo as mulheres faziam muita meia, e então quando havia vento deitávamos ao ar. Aquilo começava a subir e era o rabo de trapos que aguentava o papagaio no ar.” (Edolino Gonçalves, n. 1934, Santa Rita, Vila Real de Santo António)
Miniaturas de alfaias e engenhos agrícolas
E porque as brincadeiras e jogos infantis tendem a reproduzir em miniatura o mundo dos adultos e seus modelos sociais, também com a cana, a criança construía brinquedos que remetiam para práticas, alfaias e engenhos agrícolas. Neste universo, encontramos os moinhos de água ou rodízios que miniaturizam os engenhos que aproveitam a força da água para a elevar e encaminhar para as regas. Era frequente construírem-nos com diversos materiais, frequentemente a cana, e colocarem-nos num curso de água, para que girassem.
“Quando começava a haver água no campo depois da chuva, nos pequenos barrancos ou regatos construíamos moinhos de água com cana, com as metades da cana a fazer de raios e a água a passar fazia rodar. Lateralmente tinha duas canas que abriam e que apoiavam o eixo da roda e nessa roda estavam as tais canas que a água fazia rodar.” (Marta Almeida, n. 1975, São Bartolomeu de Messines, Silves)
Brinquedos antiquíssimos, representados na iconografia medieval, os moinhos de vento e caravelas, movidos pela força do vento, apresentam diversas formas e podem ser feitos a partir de diversos materiais, sendo a cana frequentemente utilizada para a pega e por vezes também para as velas, especialmente nos cataventos que se colocavam a girar nas hortas para indicar a direção do vento.
O carro de bois, parte do quotidiano das aldeias, era modelo frequente para as brincadeiras dos rapazes, que assim reproduziam as atividades dos adultos. Antiquíssimo e disseminado pelo mundo, o carro de bois era construído a partir dos mais diversos materiais: madeira, cortiça, canoilo de milho, castanhas e também por vezes integralmente de cana.
Armas
Objetos de iniciação na defesa e no ataque e de imitação das atividades ancestrais da guerra e da caça, as armas-brinquedo (espadas, arco e flecha, fisgas, fundas, espingardas e pistolas) faziam parte da infância da rapaziada. Para fazer a espingarda de cana, dava-se um golpe no sentido horizontal até meio da cana, abria-se um orifício retangular a dois centímetros da parte superior de modo a perfurar as duas metades. Aí funciona o gatilho, um pequeno fragmento de cana. Na posição de atirador a criança pressionando o gatilho, faz com que a metade superior da cana bata sobre a inferior provocando um pequeno estampido. O arcabuz, também conhecido por espingarda de cana, era feito pelos rapazes com cana e vara de oliveira ou marmeleiro. Funciona através de um impulso proporcionado pela vara verde que projeta as balas: pequenos pauzinhos ou pedrinhas.
As gaiolas de grilo estavam ligadas a uma atividade lúdica comum nas crianças dos meios rurais: “ir aos grilos”. Já registava Leite de Vasconcelos que “os grilos nas aldeias são muito estimados e, quando eles cantam nas pilheiras das cozinhas, dizem que é sinal de fortuna para a casa.” (AMADO, 2007: 171) As gaiolas de cana com a base redonda em cortiça servem para apanhar e transportar o grilo no campo, depois de o fazerem sair do buraco metendo lá dentro uma palhinha de centeio ou trigo, e as gaiolas retangulares (em madeira, cortiça, arame ou cana), para guardar o grilo em casa.
Fantasias
Telefones de cordel, bugalhos voadores, candeias integram os brinquedos de fantasia. Também conhecido por salta palhinhas ou bugalho voador é construído com um troço de cana em cuja extremidade se coloca um bugalho (ou uma pequena esfera de cortiça). Ao soprar na cana o bugalho começa a saltar no ar.
Também o conhecido telefone de cordel se podia fazer com duas latas, caixas de fósforo ou tubos de cana (conforme descrito por Leite Vasconcelos na sua Etnografia Portuguesa) tapados nas extremidades com bexigas de porco ou com uma carneira, ligadas por um cordel, de preferência untado com cera de sapateiro para que o som passasse melhor. Conversavam assim as crianças à distância.
As originais candeias de caracol fazem-se abrindo uma cana na parte superior onde encaixa a concha do caracol com a abertura virada para cima, cheia de azeite e com uma torcida de pano.
Que sentidos no presente para os brinquedos populares?
Deslocados dos contextos originais de produção e utilização, o que representam hoje os brinquedos populares? Que destinatários, que contextos para o seu usufruto?
Atualmente, para os que procuram este tipo de objetos, a sua função representativa, remetendo para outras infâncias e brincadeiras, parece sobrepor-se à função lúdica. Os brinquedos populares, para os que os utilizaram em pequenos, evocam memórias de infância onde a liberdade no brincar compensava o trabalho e a pobreza. Para os que cresceram nas cidades e tiveram acesso a outros brinquedos, respondem a uma sede de conhecimento da cultura material do mundo rural, à procura de raízes e à valorização do passado e das identidades locais.
Para as crianças, se em alguns brinquedos populares o sentido lúdico é evidente e imediato (bolas, carros, bonecas, bonecos articulados), outros necessitam ser descodificados (gaiolas de grilo, espingardas de cana, saquinhos com pedrinhas, etc.) por familiares e educadores.
Para os pedagogos, os brinquedos populares proporcionam a aprendizagem do afeto, do diálogo e da linguagem, do movimento corporal, do trabalho, da solidariedade, das regras do jogo e do convívio. Pela sua ligação ao meio local e ao passado reforçam também, na criança, a consciência de uma identidade que nos diferencia e distingue num mundo cada vez mais uniformizado, como espelham os brinquedos industriais.
Parte do património cultural, os brinquedos populares interessam ainda a historiadores e antropólogos, pelo que revelam de universal e particular, pelo que transportam da nossa memória coletiva e nos dizem sobre as sociedades e os fenómenos de permanência e mudança no seio da tradição.
Escrito por: Catarina Oliveira.
Centro de Investigação e Informação do Património de Cacela
MM
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