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sábado, 21 de maio de 2016

COMO ADOPTAR UM CICLISTA -11 PASSOS por Marta Elias

Adotar um ciclista não é fácil. Aliás, é um processo bastante complexo e que exige copiosas doses de paciência, abnegação, tolerância e boa vontade.
Aqui ficam os 11 passos necessários para completar a adoção, a par com as fases que vais atravessar até à conclusão do processo.
Aviso: Não aconselhado a pessoas controladoras ou com problemas nervosos. Aliás, se pretende avançar com o processo, convém encontrar um bom dealer que lhe garanta generosas doses de marijuana ou tranquilizantes.
Passo 1 – A Decisão
Tudo começa uma bela manhã, quando ele se cruza com um amigo que vai de bicicleta e comenta distraidamente que não anda de bicicleta há anos. Lembra que o Pedro tem andado e resolve combinar uma volta para o dia seguinte.
– Tu até ficas feliz, ele está a ficar com aquela barriguinha típica dos entas e mexer-se só pode fazer-lhe bem. Não, não queres ir, mas simpatizas com a ideia. Tranquilo.
Passo 2 – O Arranque
No domingo ele veste uma t-shirt e uns calções, calça uns ténis e lá vai ele. Regressa ao fim de uma hora, extasiado. Afinal ainda tem jeito, até ganhou ao Pedro numa subida e ele anda a treinar há algum tempo.
No domingo seguinte vão outra vez. E no outro. E no outro. E de repente, as manhãs de domingo estão reservadas à bicicleta.
– Tu continuas tranquila, faz-lhe bem, desanuvia da semana e, ao fim ao cabo, também não perturba a paz familiar, antes pelo contrário.
Passo 3 – A Escalada
Os passeios de domingo evoluem gradualmente de uma bastante aceitável duração de uma hora… para uma hora e meia. Poucas semanas decorridas e nada que dure menos de três horas o satisfaz. Começa a chegar a casa já em cima da hora do almoço, às vezes um bocadinho depois.
– Tu não achas muita piada.
Passo 4 – O Dia L 
O dia em que ele compra uns calções de licra.
A t-shirt ainda aguenta, mas os calções são uma necessidade primária. Sem aquela fralda que lhes vem acoplada, o rabo fica desfeito, sem a licra fica todo assado.
É apenas uma questão de semanas, poucas semanas. Sem saberes como nem porquê, de repente o teu marido anda na rua de maillot, com um capacete em forma de supositório, óculos semi transparentes amarelados, calçado com umas chuteiras que soam como sapatos de salto alto e de luvas sem dedos, à la estrela de rock dos anos 80.
– Percebes que a coisa está a tomar proporções preocupantes e não gostas, mas ainda não tens a noção do que aí vem.
Passo 5 – A Primeira Prova
A primeira prova envolve treino, treino e mais treino. Os sábados passam a integrar, a par com os domingos, o calendário do atleta.
De repente:
Tens uma festa e ele não quer ir porque tem de se levantar cedo no dia seguinte. O motivo é:
a) Para trabalhar
b) Para te ir comprar um presente
c) Para levar o puto ao futebol
d) Para ir andar de bicicleta – tem de treinar.
Tens um jantar e ele está a cair do tripé, porque:
a) Passou o dia a trabalhar
b) Passou o dia a procurar um presente para ti
c) Passou o dia no parque com os miúdos.
d) Esteve a andar de bicicleta – tem de treinar.
Queres falar sobre a relação. Não consegues, porque:
a) Ele está a trabalhar.
b) Foi à missa.
c) Está a escolher um presente para ti na internet.
d) Está a falar sobre bicicletas com os amigos – faz parte do treino.
Deitam-se juntos. Não se passa nada. Ele está exausto, porque:
a) Teve um dia de trabalho lixado.
b) Salvou sozinho todos os alunos da creche dos filhos de um incêndio de grandes proporções
c) Comprou-te 50 quilos de presentes e acartou-os escada acima pelos nove andares do prédio.
d) Esteve a andar de bicicleta – tem de treinar.
– Tu respondes d) a todas as perguntas:
ESTÁS TRAMADA.
Passo 6 – Assumir o Vício
Feita a primeira prova com excelentes resultados, a energia dele toma novo impulso. Treina mais, sempre que pode, e inscreve-se em todas as provas que encontra em Portugal. Em casa, ou mesmo fora dela, assiste a provas de ciclismo internacionais pela TV ou internet, algumas relatadas por um francês que fala mal português.
Escolhem um filme para verem juntos e, no final do genérico de abertura, percebes que ele tem não um, mas ambos os olhos na sua APP do grupo das bicicletas onde compara percursos, resultados, batimentos, watts e tempos.
Revistas da especialidade aparecem em cena.
– Nesta fase tu racionalizas. Avalias constantemente se queres mesmo avançar com o processo. Estás dividida entre o apoio que sentes ser teu dever dar-lhe e a vontade de fazeres uma pira onde ele se imole mais a porra da tralha que já ocupa 88% das áreas comuns da vossa casa. Tu tentas, oh se tentas, mas ele dificulta-te a adoção. Aliás, parece não querer mesmo ser adotado. Desconfias que ele também é um bocado autista. Ou surdo.
Passo 7 – O Vicio Cada Vez Pior. Uma Bike Nova
Claro que tão célere evolução só podia ir parar a mais uma necessidade – uma bicicleta melhor. Mais noites e noites afogado na internet a comparar preços, materiais, rendimentos, tamanhos.
– Tu já passaste a fase das dúvidas. Agora já sabes que não queres adotá-lo. Aliás, o que tu queres mesmo é que ele se mude, mais a televisão, o Tablet, os sacos, biberões, collants e a porcaria da garagem inteira para o raio que o parta.
Passo 8 – A Alta Competição
As provas passam de locais a regionais, de regionais a nacionais. De uma manhã passam a um dia, de um dia passam a um fim-de-semana. Do BTT passa para a estrada – outra bicicleta. Mais e melhores licras, mais e melhores luvas, mais e melhores calções. Ceninhas para proteger os pés, ceninhas para proteger o pescoço, mangas de tirar e pôr.
Tens mais licra em casa que a turma toda do Fame.
A conversa das bikes dá-te náuseas. Percebes que vai continuar em ambas as modalidades. Falas em divórcio, apresentas os teus motivos, choras um bocadinho. Ele compreende. E tem pena. E abraça-te.
Passo 9 – O Peso
A contagem de calorias entra a sério na ordem do dia e ele começa a perder peso. Sente-se bem, tem mais rendimento. Vive obcecado com hidratos, lípidos, proteínas e quantidades de cada.
Fazes um jantar light, ele levanta-se e vai cozinhar uma massa. Entram-te em casa ingredientes como quinoa, que nenhum de vocês sabe como cozinhar e sabe a trampa, cereais integrais e muesli de todos os tipos. As proteínas acumulam-se em potes de uma tonelada no chão da despensa. Há barritas e saquetas com gel em todas as divisões.
Tu e os amigos gozam com ele, a magreza fica-lhe mal. Tem as marcas da camisola, dos calções, das luvas, das meias e do capacete pintadas a sol na pele branca. Está ridículo e não se importa.
Mas tu sim.
O Halibut surge na bancada da casa de banho para ficar. Já não vias Halibut desde que tinhas de o espalhar no rabo dos teus filhos. Não tarda nada está a pedir-te que o espalhes no dele.
Começas a recear o dia em que vais encontrá-lo na depilação.
– Talvez estejam naquelas encruzilhadas que afastam os casais. Talvez esteja na hora de ir cada um para seu lado. Amigo não empata amigo, se ele quer aquela vida, ótimo, ele que vá em frente, também não queres que ele seja infeliz. Falas com ele. Ele compreende e fica triste. Pede-te que esperes um bocadinho.
Os treinos intensificam-se, vem aí a mais dura prova.
Passo 10 – A Prova Rainha
De repente, o desafio entra noutra dimensão: mais de 1.000 km de bicicleta. Portugal de uma ponta à outra por montes e vales, uma semana inteira em etapas a pedalar.
Mais treinos, mais dias inteiros fora de casa. Fins-de-semana completos. Desconfias que, podias ir fazer uma viagem ou alugar um quarto lá em casa, que ele nem dá por isso.
– Já o odeias. Já odeias os amigos todos dele e nem os conheces. Já odeias a licra toda que enche o estendal e mais os frutos secos e as barras e a balança e as perguntas “viste o meu capacete?”, “viste as minhas luvas pretas?”, “sabes do meu impermeável?” e mais a novidade do PT/ nutricionista que agora completa o cenário. Já odeias tudo e só te apetece furar os pneus da porcaria das bicicletas e parti-las aos bocadinhos e dar-lhas a comer ao jantar. Com massa.
Percebes que estás mesmo no teu limite. Sentes-te enganada, afinal não foi aquele o produto que compraste.
Decides que esperas, mas quando aquilo acabar têm de ter a conversa.
Passo 11 – A Adoção
E lá vem a prova. Partem de Bragança.
Sabias que ias estar preocupada e ficas mesmo. Afinal trata-se de uma prova muito exigente e ele não é nenhum miúdo.
Ele está nervoso e tu condescendes – já que chegaram até aqui, claro que vais estar a torcer por ele. A claque familiar une-se, é lógico que vão estar lá para o abraçar.
Mas com o que não contavas era com o que viria a seguir: o entusiasmo com que segues cada etapa em direto pela internet; o alívio que sentes no final de cada dia; a ansiedade com que analisas as classificações; a vontade de chorar quando o vês, finalmente, a cruzar a meta.
O orgulho. O orgulho desmedido naquilo que ele conseguiu fazer, no resultado extraordinário da classificação final, na razão que ele tem em sentir-se um super-homem. Valeu a pena.
Percebes que talvez parte da tua resistência tenha vindo do ciúme.
Percebes que gostas dele e que o amor e o casamento têm de ser elásticos para que o caminho de cada um continue a encaixar-se num projeto comum.
E compreendes que é desta fibra que são feitos os vencedores. Que é a persistência, a abnegação, o espírito de sacrifício e um certo autismo que separam os que conseguem dos que desistem.
E recordas todas as vezes em que ele te apoiou, em que te deu força, em que segurou a montanha sozinho, em que foi o teu porto seguro.
E percebes que ele não vai parar, mas tu também não queres que ele pare. Queres estar lá com ele, a torcer por ele, pedalada após pedalada, semana após semana, até um dia ele decidir parar. Porque quis parar.
Porque na vida que escolheram há espaço para os dois. E porque afinal sempre adotaste um ciclista.
Desde que ele não compre mais nada.
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MM

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