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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A bicicleta como extensão do homem em dez cenas no cinema.



Qual a relação entre rodas, bicicleta e aviões? O pesquisador canadense Marshall McLuhan (1911-1980) em seu livro clássico “Os Meios de Comunicação como extensões do Homem” faz interessantes interconexões históricas entre esses três meios técnicos e seus desdobramentos culturais como o cinema e a invenção de um veículo com rodas in line como o meio que conduzirá à aviação. Dos insights do pesquisador canadense podemos descobrir secretas conexões entre a invenção da roda, o cinema e as bicicletas na história da cultura. Mais do que isso, descobrimos a base tecnológica de todo o imaginário de iluminação espiritual e transcendência que a bicicleta passa a construir na cultura pop a partir do pós-guerra.

                No capítulo “Roda, Bicicleta e Avião”, McLuhan narra a trajetória dos veículos de tração por arrasto (trenó, esqui etc.) até a tecnologia da roda. Foi necessário muito esforço mental e abstração para separar os movimentos recíprocos com as mãos, do movimento livre das rodas. Os efeitos das carroças de quatro rodas sobre a vida urbana foram extraordinários: desenvolvimento das cidades, separação entre a vida urbana e rural etc. Com as ferrovias e estradas a força configuradora das rodas ganha ainda mais força, até a atual era da informação diminuir o seu poder de moldar as relações humanas.

                Mas as rodas deixaram dois importantes legados para a atualidade: o cinema e a bicicleta. A câmera e o projetor do cinema são significativos por serem constituídos por um conjunto sutil de rodas: enrolar o mundo em um carretel para depois desenrolá-lo na tela. Com a convergência tecnológica, testemunhamos mais um subproduto da era das rodas desaparecendo com a obsolescência do dispositivo cinematográfico: o fim dos rolos de filmes e o início da projeção de filmes digitais diretamente em streaming.

                Mas foi o alinhamento das rodas em tandem que as elevou ao plano do equilíbrio aerodinâmico, trazendo maior intensidade e velocidade. Não foi por acaso que os irmãos Wright eram mecânicos de bikes e que os primeiros aeroplanos pareciam mais com bicicletas. A aerodinâmica, o equilíbrio, a velocidade que quebra a resistência do ar e a condição de suspensão que o ciclista experimenta em deslocamento criaram a conexão com os veículos aéreos.

                Sincronicamente, as rodas alinhadas no dispositivo cinematográfico também estão presentes na bicicleta. Não é à toa que o cinema tão bem representou a evolução do imaginário das bikes na cultura do século XX, de signo da racionalidade do mecanismo na modernidade, passando pela poética realista da sua importância como meio de transporte barato até as conotações mais espirituais ou metafísicas decorrentes da experiência de suspensão que o veículo cria para o usuário. A mesma experiência que levou ao insight da invenção do avião.


"Transformar a vida em impulso"


A bicicleta surge em 1817 na Alemanha pelas mãos do Barão Karl Von Drais que inventou seu laufmaschine (máquina de correr), patenteado por ele como “velocípede” e apelidado posteriormente como “dandy horse”.

                A primeira bicicleta por propulsão mecânica foi construída pelo escocês Kirpratick MacMillan em 1839: um projeto de tração traseira usando pedais conectados por barras de uma manivela traseira semelhante à transmissão de uma locomotiva a vapor.

                Mas é em 1885 que John Starley cria a chamada “bicicleta de segurança” com a dianteira dirigível e uma unidade com corrente para a roda traseira, dando conforto, rapidez e segurança.

Bicicleta: um importante
papel no movimento
feminista
                Se no início, a bicicleta é o símbolo do racionalismo mecânico e do imaginário da máquina como símbolo da organização científica da sociedade moderna como uma “máquina de correr”, após a bicicleta da segurança assume um papel de liberação ao tornar-se peça importante no movimento feminista do início do século XX, dando à mulher a sensação de liberdade e auto-suficiência. “Eu não perderia meu tempo em fricção quando posso transformar a minha vida em impulso”, dizia o norte-americano Frances Wilard em 1895 no seu livro “Como Aprendi a Andar de Bicicleta”, cuja metáfora do ciclismo ajudou a estimular as mulheres a se libertar dos corsets e das saias até os tornozelos para aderirem ao ciclismo.

                Na frase de Wilard já está o registro da experiência de suspensão, impulso, deslocamento acima do solo e liberdade, longe dos tempos das primeiras “máquinas de correr” impulsionadas pelos pés no chão. O simbolismo da bicicleta começa a abandonar o campo imaginário maquínico para criar um imaginário mais espiritual da liberdade e suspensão.

Em postagem anterior fizemos uma relação entre essa experiência de suspensão da bicicleta e o estado alterado de consciência da suspensão que propiciaria estados gnósticos de iluminação espiritual (veja links abaixo): a bicicleta é mais do que um mero instrumento de lazer, é algo mais próximo da declaração política. Velocidade, equilíbrio, uma certa liberdade de espírito, manter a forma, técnica e perfeição tecnológica, na aerodinâmica.

A bicicleta é em si um instrumento musical: o som ritmado da corrente, engrenagens, a respiração e batimento cardíaco, tendo como fundo o som contínuo “shhhhhh” do contato do pneu no asfalto. Tal como um mantra, confere uma “liberdade ao espírito” ao esvaziar a mente, seja pela repetição de sons e movimento, seja pelo esgotamento físico. Montar na bicicleta e se deslocar velozmente como se estivesse suspenso e, ao mesmo tempo, o som ritmado do corpo e do mecanismo anulando a atividade racional/mental.

  Por exemplo, a música “Bike” do Pink Floyd de 1967 associa a experiência de andar com uma bicicleta munida de cesta e campainha a ouvir uma melodia com rimas e ressonâncias que surgem do mecanismo da bike, e convida a mulher amada a escutá-la. É um exemplo dessa representação espiritual e transcendente da bicicleta na cultura pop de pós-guerra.

Acompanhe o trajeto da construção do imaginário das bikes no cinema nessas dez cenas selecionadas:

1 – A Saída dos Operários da Fábrica (1895)




Nesse filme projetado na primeira exibição pública de apresentação do invento vemos operários saindo de uma fábrica em Lyon, França. Operários com suas bicicletas, montados ou desmontados saem junto com os pedestres. A bicicleta ainda dentro do seu significado moderno como “máquina de correr”, integrada ao cotidiano fabril e à racionalidade contemporânea.

2 – Ladrões de Bicicletas (1948)



Clássico do neo-realismo italiano de Vitório de Sica onde numa Itália arrasada pela Segunda Guerra todos lutam para sobreviver em bairros operários em meio a ruas degradadas e ladrões de ocasião. No neo-realismo, cineastas decidem sair dos estúdios e filmar nas ruas com atores não profissionais para arrancar poesia de uma estética realista e documental. E a bicicleta surge aqui como signo principal da vida dura, como veículo barato e prático para tempos difíceis. Aqui, a bike se liberta do imaginário maquínico da modernidade para ser investida por um poético significado: como tábua de salvação em uma sociedade que afunda.

3 – Clube da Luta (1999)





Andar de bicicleta dentro de casa não é algo recomendável. Por isso a cena do filme Clube da Luta onde o personagem principal lê um livro para pacientes com câncer enquanto Tyler Durden anda de bicicleta pelos cômodos da casa ganha um grande significado: a bike como símbolo de inconformismo e revolta em um filme contra a sociedade consumista que prende as pessoas a objetos e trabalhos sem sentido.

4 – Cinema Paradiso (1988)



Forçado pelas dificuldades econômicas de pós-guerra na Sicília, Toto é forçado a trabalhar na igreja local, uma atividade que ele não ama tanto quanto sair com Alfredo, proprietário do cinema local. Nesta cena, com a sua bicicleta Alfredo resgata o menino do seu enfadonho trabalho religioso após o menino encenar um acidente. A bicicleta é o veículo de libertação: da tediosa rotina para a fantasia e o sonho do cinema.

5 -  “Quicksilver – O Prazer de Ganhar” (1986)



Dentro do subgênero “desconstruindo o Yuppie” muito comum nessa década (“Totalmente Selvagem”, 1986; “Depois de Horas”, 1985), Kevin Bacon faz um especulador que perde tudo na Bolsa. Desencantado de tudo vai ganhar a vida como bike courrier nas ruas de Nova York. Através da bicicleta descobre a liberdade e o colorido das ruas, como nessa sequência onde as acrobacias com uma bicicleta se encontram com a breakdancing. Mais uma vez, bicicleta é o veículo da liberdade e novas descobertas.

6 – “Os Goonies” (1985)




Um grupo de crianças que se autodenominam “Os Goonies” acham um mapa que supostamente os levará ao tesouro de um pirata do século XVII. Isso às vésperas de suas casas serem demolidas devido à expansão de um clube de campo local. Eles têm um plano para salvar suas casas com o tesouro, mas para isso terão que fugir dos adultos e do irmão mais velho com suas bicicletas. A bicicleta como instrumento de fuga para aventuras e veículo para a descoberta de um outro mundo que os fará crescer.

7 – “A Grande Farra dos Muppets” (The Great Muppet Caper, 1981)




Olhando essa sequência filmada no Battersea Park, Londres, ficamos pensando: como eles fizeram isso? Quem se importa, quando estão reunidos nessa sequência todos os sentidos que o cinema atribui às bikes: liberdade, leveza, estado de suspensão, aventura e poesia. E surrealismo: Miss Pig e Caco, o Sapo pedalando e cantando.

8 – “Vidas Sem Destino” (Gummo, 1997)



Aqui temos a sequência de bike com as crianças mais assustadoras do cinema. “White trash” - ou Lixo Branco, termo utilizado para pessoas brancas de baixíssimo estatuto social, cultural e econômico. Um filme sobre a rotina dos moradores sem esperança de uma cidade devastada por um tornado. Já não há mais adultos, e as crianças vivem por si mesmas. Aqui, a bicicleta BMX (recorrente na década de 1980, sempre associada à infância, aventura e audácia) está associada a jovens niilistas e sem esperanças. O passeio de bike é para observar a cidade imunda e desorganizada.

9 – “ET” (1982)



Talvez a mais emblemática cena de bicicleta na história do cinema: o protagonista Eliot atravessado o céu montado na sua BMX, tendo a Lua ao fundo e um pequeno alienígena em sua cesta. Temos a representação icônica da experiência de suspensão que a bicicleta pode proporcionar: o estado alterado de consciência de silêncio pelo esvaziamento da mente na integração homem, máquina e natureza.

10 – Butch Cassidy and The Sundance Kid (1969)


Com certeza, a melhor sequência com bicicleta da história do cinema, um perfeito vídeo-clip dentro do filme ao som de “Raindrops Keep Fallin’ on my Head” cantada por B.J. Thomas. E também uma sequência bem simbólica: a história da dupla de bandidos marca o fim da era do romântico “velho oeste” e o início da modernidade. Cansados de serem perseguidos pela polícia, eles fugirão para a Bolívia. É o fim de uma era, aqui representada na sequência onde Butch Cassidy apresenta para Etta o símbolo do futuro e da modernidade que está por vir: a bicicleta.

Por isso essa sequência é esteticamente perfeita, mas ideologicamente regressiva em relação ao imaginário libertário da bicicleta que estava sendo delineado no cinema desde o pós-guerra. Ao se mostrar para Etta fazendo malabarismos na bike ela dá de encontro com uma cerca, leva um tombo e depois é perseguido por um touro. Acidente premonitório com relação ao futuro dos protagonistas e o fim de uma era romântica.

MM

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